Partes e procuradores não podem invocar elementos referentes à vida sexual pregressa de mulher vítima de violência para desqualificá-la, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento. O dever de impedir a prática é do julgador, sob pena de responsabilização administrativa, penal e civil.
O entendimento é do Supremo Tribunal Federal, que decidiu nesta quinta-feira (23/5) proibir que mulheres vítimas de violência sejam desqualificadas durante audiência e julgamento com base na sua vida sexual pregressa ou em seu modo de vida.
Venceu, por unanimidade, o voto da ministra Cármen Lúcia. Inicialmente o caso envolvia apenas audiências e julgamentos envolvendo crimes contra a dignidade sexual. O tribunal, no entanto, decidiu que a vedação vale para qualquer tipo de violência contra a mulher.
A corte expandiu a decisão por entender que a desqualificação das mulheres é prática comum também em casos de violência doméstica, política, entre outras.
Há casos, por exemplo, em que se questiona, durante audiência, se casos de violência se deram em resposta a algum comportamento da vítima. Segundo a ministra Cármen Lúcia, esse tipo de inquirição acaba por revitimizar mulheres. Por vezes, também influencia decisões.
Voto da relatora
Cármen votou na quarta-feira (22/5). De acordo com ela, argumentos sobre a intimidade da mulher e de seus hábitos sexuais tentam passar a ideia de que há quem mereça e quem não mereça ser vítima de violência.
“Essas práticas, que não têm base legal nem constitucional, foram construídas em um discurso que distingue mulheres entre as que ‘merecem e não merecem’ ser estupradas”, disse a relatora.
Segundo ela, esse processo de revitimização das mulheres é comum no Judiciário em casos de crimes em que se tenta deslocar do agressor para a vítima a conduta delituosa”.
“Atribuem culpa à mulher que já teria uma vida sexual anterior ‘promíscua’, ou ao tipo de vestimenta que adotava, dizendo: ‘foi ela que quis’, ‘ela estava em um bar sozinha’, ‘ela estava com a roupa tal ou qual’”, prosseguiu.
Por fim, a ministra propôs que a proibição de citar a vida pregressa da mulher não valha em casos em que o acusado tenha se utilizado da tese da legítima defesa da honra, já considerada inconstitucional pelo Supremo. O objetivo é impedir que o réu provoque a nulidade do julgamento propositalmente.
Com a decisão, ficou definido:
- Conferir interpretação conforme a constituição a expressão “elementos alheios aos fatos objetos de apuração”, posta no artigo 400-A do CPP, para excluir a possibilidade de invocação pelas partes ou procuradores de elementos referentes à vivência sexual pregressa da vítima ou a seu modo de vida em audiência de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, sob pena de nulidade do ato ou do julgamento, nos termos dos artigos 563 a 573 do Código de Processo Penal;
- Fica vedado o reconhecimento da nulidade referida no item anterior na hipótese de a defesa ter se utilizado da tese da legítima da defesa da honra com essa finalidade, considerando a impossibilidade de o acusado se beneficiar da própria torpeza;
- Conferir interpretação conforme ao artigo 59 do CP para assentar ser vedado ao magistrado na fixação da pena em crimes sexuais valorar a vida sexual pregressa da vítima ou seu modo de vida;
- É dever do julgador atuar no sentido de impedir essa prática inconstitucional, sob pena de responsabilização administrativa, penal e civil.
A ação
A ação foi apresentada pela Procuradoria-Geral da República. O órgão afirma que o discurso empregado é discriminatório e revitimiza mulheres. O julgamento teve início em 7 de março, quando a relatora leu o relatório e foram apresentadas as sustentações orais.
A PGR pediu ao Supremo que declare a inconstitucionalidade da “prática de desqualificar a mulher vítima de violência sexual durante a instrução e o julgamento de crimes dessa natureza”.
A subprocuradora-geral da República Elizeta Maria de Paiva Ramos, que assina a ação, afirmou que o ordenamento jurídico nacional e o internacional exigem postura ativa do Estado para garantir a proteção da mulher, o que inclui proibir que alvos de violência sexual sofram revitimização durante investigações e julgamentos.
“O discurso de desqualificação da vítima, mediante a análise e a exposição de sua conduta e hábitos de vida, parte da concepção odiosa de que haveria uma vítima modelo de crimes sexuais, como se se pudesse distinguir as mulheres que mereçam ou não a proteção penal pela violência anteriormente sofrida”, disse Elizeta.
“Essa narrativa de desqualificação da vítima é recorrente porque encontra espaço para tanto, em ambiente que precisaria ser garantidamente seguro, porque mediado pelo poder público”, prosseguiu a subprocuradora.
Segundo ela, é dever das partes zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento dessa norma, também sob pena de responsabilização.
“É imperativo que o Supremo Tribunal Federal reconheça a inconstitucionalidade da utilização (como argumento de defesa) e da consideração ou validação (como razão de decidir) de narrativa de desqualificação da vítima em crimes sexuais, bem como reforce o dever do poder público de coibir, na seara jurisdicional, comportamentos com esse propósito.”
Fonte: Conjur / Tiago Angelo